quinta-feira, 14 de março de 2013

Racionalismo e Fé

[Nota prévia: O presente trabalho foi realizado pelo autor deste blog, no ano lectivo de 1998/1999, enquanto aluno da classe de Temas Contemporâneos, no âmbito do Curso de Licenciatura em Comunicação Institucional, ministrado no Instituto Superior de Ciências da Informação e Administração, em Aveiro. Na sequência da eleição de um novo papa e das questões que se colocam, creio ser o momento oportuno para deixar à discussão um tema sempre polémico sobre Razão e Fé]



Ilustração: "Crença e Razão", C.O.


«Se a razão é um dom do céu
e o mesmo se pode dizer da fé,
o céu deu-nos dois presentes
incom­patíveis e contraditó­rios.»

Diderot

Introdução

Os primeiros homens não eram, certamente, materialistas, e muito menos racionalistas. Durante milénios, convencidos de que viviam num mundo regido por forças invisíveis, inatingíveis e incontroláveis, estiveram, sobretudo, concentrados com o porquê das coisas. Saber como o Universo e a Vida tinham nascido e evoluído não constituía motivo de preocupação. 

Assim, todas as mitologias foram arquitectadas em função de textos sagrados, os quais davam-lhes o essencial do saber e do dever: a criação do Universo e do Homem, sentido de existência, modo de vida… 

Durante os séculos denominados de "idade da fé", reinou a ideia de que nada havia a procurar algures no ambiente circundante ao homem. Os teólogos persistiam na incompreensão e na oposição às descobertas científicas, quando estas punham em causa os ensinamentos dos livros sagrados na sua estrita interpretação. Mas a sua posição tornava-se cada vez mais difícil, à medida que o desenvolvimento da ciência se fazia sentir. Santo Agostinho (354-430) estabeleceu uma transição. Concedeu toda a sua importância nos conhecimentos dados pela revelação divina, não esquecendo nunca a razão. Durante os "séculos obscuros" da Idade Média, os monges incumbiram-se de "abafar" o que perdurava da ciência – facto abordado no famoso filme O Nome da Rosa, no qual os livros eram censurados e amaldiçoados. Nos séculos XI e XII, a Igreja recuperou a ciência antiga traduzida do árabe. A síntese de Aristóteles sobre a explicação do mundo exerceu uma atracção irresistível. São Tomás de Aquino (1227-1274) esforçou-se, também ele, por conciliar fé e razão. 

Decorrido de todo este quadro, houve dois confrontos sérios. O primeiro registou-se no século XVI, quando se realizou uma grande viragem das concepções cosmológicas. Em 1543, Nicolau Copérnico (1474-1543) publicou o famoso De Revolutionibus orbium caelestium onde formula a teoria heliocêntrica, liquidando a teoria geocêntrica de Ptolomeu. O que foi confirmado posteriormente por Galileu (1564-1642) e por Isaac Newton (1642-1727), homens de ciência, mas crentes. Nos princípios do século XVII era ponto assente a posição da Terra no Universo. Foi admitido, então, que na imensidão do espaço e das galáxias, das estrelas e dos planetas, a Terra «é um grão de poeira e não mais o centro do Universo e que, na imensidão do tempo, o homem é apenas um instante situado no fim de uma longa evolução com inumeráveis experiências»[1]. Refira-se, ainda, que, antes de Galileu, Giordanno Bruno (1550-1600), monge dominicano, tinha oposto ao mundo finito de Aristóteles a ideia de um mundo infinito, entregue a uma evolução universal e eterna. 

No século XIX teve lugar o segundo confronto entre as Igrejas e a Ciência, quando Lamarck (1744-1829) lançou a hipótese do transformismo oposto ao fixismo das Escrituras e Darwin (1809-1882) publicou A Origem das Espécies, demonstrando o evolucionismo. 

A crença no poder absoluto da razão e da ciência, levada ao extremo no século XIX, suscitou um fervor quase religioso, o cientismo[2]. Entusiasmados com as descobertas e invenções, os sábios julgaram-se capazes de explicar todos os enigmas do Universo. Autores como Friedrich Hegel (1770-1831) e Karl Marx (1818-1883) pretenderam substituir a fé num Deus providencial pela crença na ciência, origem de inúmeros benefícios para a humanidade; Ernest Renan (1823-1892), Taine (1828-1893) e Berthelot (1827-1907), todos mais ou menos discípulos de Auguste Comte (1798-1857), julgavam que a ciência podia substituir a religião para explicar ao homem o seu mistério. 

Após vários séculos, a coexistência entre as crenças religiosas e a ciência, embora um pouco mais atenuada, permanece impossível. Assim nasceu o meu interesse por um tão polémico tema, que é o da razão e da fé. 

Durante toda a minha vida cresci em conflito com estas duas realidades distintas, que são os dogmas religiosos – cristãos, no meu caso – e racionais. 

Com efeito, digamos que tive uma educação religiosa paralela a uma educação científica, correspondentes às da catequese e das escolas. Em ambas, os factos interiorizados, para não dizer impostos, referem-se às mesmas realidades. Contudo, a forma como explicam a sua origem, evolução e natureza, obriga-nos a um conflito materializado na questão da fé e da razão. 

Definir cada uma destas faculdades, dar a conhecer as suas eventuais relações, bem como os efeitos produzidos no seio da Humanidade, são os objectivos deste trabalho de reflexão, que compreende três partes. 

A primeira parte diz respeito à religião, sua origem e evolução, factos indispensáveis que possibilitam a formulação de uma definição válida e a compreensão das funções da mesma. 

A segunda parte será dedicada à análise de duas correntes antagónicas, que procuram explicar a questão da origem da Vida e do Universo e sua evolução. Por fim, na terceira parte será abordada, em particular, a polémica entre a razão e a fé, passando pela definição clara de cada um dos conceitos, não esquecendo as consequências dos mesmos, quando levados ao extremo.

A Religião
«É n’Ele – Deus -, realmente, que
vivemos, nos movemos e existi mos,
como também disseram al­guns
poetas: “Pois nós somos também da
Sua estirpe”.»

Actos dos Apóstolos, cap. 17, v. 28

As primeiras manifestações religiosas remontam aos rituais míticos do homem pré-histórico, ligados à caça e à agricultura, começando pelas explicações totémicas em que homem o pratica o culto dos animais prioritariamente, e mais raramente o das plantas e dos fenómenos naturais. A paleontologia faz-nos redescobrir a especificidade religiosa do homem, que é talvez a característica que o distingue mais profundamente dos restantes animais. 

Do totenismo ter-se-ia, posteriormente, evoluído para formas de explicação animistas e feiticistas (politeísmo), em que o homem atribui poderes sobrenaturais a seres invisíveis e poderosos. 

A crença num Deus pessoal e sagrado (monoteísmo) terá surgido nas religiões hebraica e islâmica. 

Através duma análise histórica da filosofia, vemos que já na Grécia está subjacente o problema teológico. Para Platão, Deus era a própria ideia de Bem, situada num mundo superior e transcendente – o mundo das Ideias. Para Aristóteles, Deus é o primeiro motor de toda a existência. 

A Idade Média preocupar-se-á em fundamentar racionalmente a fé. A filosofia de S. Tomás de Aquino dá-nos a imagem de um Deus vivo, pessoal e criador do mundo, que se revela aos homens através da Encarnação. 

Os filósofos racionalistas do século XVII preocupar-se-ão também em provar a existência de Deus, como garantia das verdades eternas, das ideias inatas de Descartes. 

Enfim, no decurso da história humana, toda esta necessidade religiosa tomou modos de expressão variados, solidários com as condições de existência e com os diferentes níveis de cultura. Todas as formas religiosas não são mais do que "traduções" em símbolos assimiláveis de toda a realidade interior e exterior do homem. 

De um modo geral e tendo em conta a humanidade de todos os tempos, poder-se-ia definir a religião como a aspiração do homem a um ser supremo, a forças superiores, ou ainda como o simples sentimento de dependência em relação a elas, a fim de encontrar uma explicação e um sentido para a sua existência no mundo. Como consequência directa, a religião designa as crenças em determinadas realidades objectivas, tais como a Origem e a evolução da Vida e do mundo, nas formas que revestem os ritos, os cultos, entre outras práticas relativas a coisas sagradas. A religião surge, pois, da luta contínua do homem contra o seu meio exterior. No decorrer dessa luta, o homem debateu-se com a dor, a frustração, o medo, sentimentos cujo consolo é dado por uma entidade que simboliza a perfeição maternal, e que se designa de Deus. Esta entidade tem o "dom" da eternidade, ideia que surge como forma de satisfação plena do homem, interior e exterior.

Figura 1: Distribuição espacial das principais religiões.

Racionalismo e Empirismo
«O que foi compreendido já não
existe. A ave confundiu-se com o
vento. O céu com a sua verdade.
O homem com a sua realidade.» 

Paul Eliuard

De um modo geral, a ciência preocupa-se, sobretudo, com o "porquê" do funcionamento das coisas. Já a religião dá mais importância ao "o quê", atribuindo, depois, a sua origem a uma entidade sobrenatural. 

Nestes termos, poder-se-ia estabelecer um paralelo entre ciência e razão e entre religião e observação. Por sua vez, tais paralelos levam-nos a falar forçosamente em duas doutrinas antagónicas: o racionalismo e o empirismo. 

O racionalismo afirma a autoridade soberana da razão no acesso à verdade, rejeitando qualquer outro caminho e considerando mesmo inadmissível o recurso a outros factores, tal como uma Revelação. É, pois, claramente contra o fideísmo. Afirma ainda que, apesar de aparecerem ao contacto da experiência, as ideias procedem, todavia, do espírito. Esta teoria opõe-se, assim, ao empirismo, que é visto como uma doutrina irracional. A esta corrente estão ligados diversos autores, dos quais são um exemplo Platão, com a ideia da reminiscência, Descartes, com as ideias inatas, e Kant, com a ideia dos juízos sintéticos a priori

O termo "empirismo" designa, então, a doutrina segundo a qual todo a espécie de conhecimentos provém da experiência, chegando a afirmar que a própria razão deriva dela, justificando, deste modo, a sua autonomia. Os representantes mais característicos do empirismo são John Locke (1632-1704), por muitos considerado o seu fundador, e David Hume (1711-1776). 

No livro IV do seu Ensaio, no capítulo III, Locke diz-nos que há três espécies de existência real: o intuitivo, da nossa experiência; o demonstrativo, da de Deus; o sensitivo, das coisas presentes aos sentidos.[3] Estas ideias confirmam o paralelo que anteriormente estabeleci entre religião e observação. 

No sentido de aclarar as questões que estas duas doutrinas levantam, vistas em função dos paralelos previamente enunciados, procederei à definição de duas categorias de conceitos: os conceitos formais e os conceitos empíricos. Com a sua definição, pretende-se delinear os seus campos de actuação, procurando realçar uma relativa permeabilidade das suas fronteiras. 

A noção de conceito formal engloba a totalidade dos formalismos possíveis e existentes, sejam eles matemáticos ou lógicos. O seu principal objectivo é atingir o conhecimento, no sentido pragmático. Isto implica a construção de leis que visam à universalidade, não podendo ser postas em dúvida. 

A Matemática e a Física são as disciplinas que caracterizam, por assim dizer, os conceitos formais ou racionais. A síntese das duas dá origem ao que se pode considerar como uma das definições de "ciência". 

O aparecimento pela primeira vez de uma física matemática remonta a Al-Hazen[4] (965-1039), físico e matemático árabe, autor de um Tratado das Curvas Geométricas e de uma Óptica. Esta última utiliza os conceitos formais de uma maneira causal, não se limitando a analisar e a descrever elementos físicos em linguagem matemática. Em vez disso, formula leis. O mesmo acontece cinco séculos mais tarde com Galileu, em relação às leis da queda dos corpos. 

A física clássica baseia-se em noções como massa, força, espaço, tempo, velocidade, movimento. Cada uma destas noções pode ser literalmente abstraída do mundo empírico que a rodeia. Por exemplo, a massa reduz-se a um simples ponto, assim como a força a um vector. O próprio espaço e tempo são geometrizados por Newton (1642-1727) e transformados, assim, em meros formalismos. 

A ciência poderia, pois, ser definida como sendo uma construção, teórica e prática, que permite tornar compreensível determinados factos ou fenómenos observáveis. A linguagem que utiliza decorre essencialmente da Física e da Matemática, o que se traduz na definição dos conceitos formais ou lógicos. 

Contudo, se existe um mundo em que a Ciência tem vocação, é sem dúvida alguma o da natureza. Isto é, o mundo observável, aquele que se manifesta aos nossos sentidos e se impõe sob a forma de conceitos empíricos. Entramos, aqui, no campo daquilo a que denominamos de as Ciências de Observação e de Experimentação. 

 Figura 2A famosa luneta de Galileu,
no Museu de História da Ciência de
Florença. As suas dimensões fazem
sorrir em relação aos telescópios
modernos, pois este tem apenas um
metro de comprimento e um diâmetro
de poucos centímetros.


O aparecimento dos instrumentos de observação data uma descoberta fundamental: o mundo que vemos "a olho nu" não passa de uma ínfima parte da realidade empírica, de que fazemos parte. Galileu, astrónomo e não físico, compreendeu o interesse da utilização da visão à distância e construiu a luneta (veja-se a fig. 2), instrumento que iria permitir descobrir as oscilações aparentes da Lua; ao mesmo tempo, Van Leeuwenhoek (1632-1723) começava a sondar o infinitamente pequeno com os microscópios que fabricou (vd. fig. 3). 

Figura 3: Desenho da época que
reproduz, com grande precisão,
um dos primeiros microscópios.

Nessa época, teve lugar uma revolução científica, na qual a máxima dominante passou a ser a seguinte: "Saber é ver!"[5]

Este axioma tornou possível a descoberta do ADN e das Luas de Júpiter. Do mesmo modo, sabe-se, agora, que as moléculas não são entidades teóricas, já que a delicadeza da observação conseguiu atingi-las. Tudo isto são fenómenos observáveis, manipuláveis e dissecáveis. 

Apesar do mundo empírico servir de base ao mundo formal, lógico, não há comparação possível entre aquilo que os compõe. Em cada um dos casos, o termo "existir" significa uma coisa distinta: o mundo empírico mostra-se e acontece, enquanto que o mundo formal demonstra-se. 

Na realidade, nenhum dos dois conceitos é absoluto. E com isto pretendo dizer que, na sua evolução, nenhuma das duas concepções conseguiu apropriar-se da totalidade do espaço explicativo. Deste modo, assiste-se a um conflito ontológico, epistémico e metodológico, ao longo do qual os dois campos se defrontam e confrontam, se associam e separam. 

Um pouco à semelhança do que acontece com a religião, o conflito é universal, muito embora exista uma multiplicidade de conceitos, que surgem aqui e ali em diversos momentos, consoante as conjunturas culturais, económicas ou políticas. 

A Origem do Universo e da Vida

«A Origem! Os começos do Universo, da Vida, do Homem, são mais enigmáticos ainda que a sua evolução ou o seu devir… as hipóteses que se formulam mais aleatórias ainda. As religiões, as filosofias, as ciências propuseram explicações.»[6]

A imensidão e a complexidade do tempo e do espaço inspiram no homem, primeiro ser dotado de inteligência e de raciocínio, a crença numa orquestração do Universo e, consequentemente, numa entidade superior que a tenha comandado. Tal entidade foi estabelecida pela totalidade das religiões, variando o conceito de Deus consoante as diferentes culturas. Assumiu formas de um ser humano, um ser híbrido, meio animal, meio homem, um animal, um astro… 

A Origem Segundo as Crenças

Embora o conceito de Deus assuma formas tão variadas, a ideia de uma orquestração do Universo apresenta uma mesma sucessão evolutiva: no início era o Caos, até que um Deus supremo saiu do seu repouso e fez a luz, criou a Terra, os seres vivos e, por fim, o homem. 

Figura 4: Adão e Eva, pintura de Dürer.

O exemplo mais significativo é o respeitante à religião cristã, que ocupa uma maior área geográfica a nível mundial. A Génese, primeiro livro do Antigo Testamento, conta a criação em seis dias. A criação é metódica: no primeiro dia, a luz e as trevas, o dia e a noite; no segundo dia, a Terra; no terceiro dia, os mares, os continentes e os vegetais; no quarto dia, o Sol, a Lua e as estrelas; no quinto dia, os peixes, os insectos e as aves; por fim, no sexto dia, os animais, antes da criação do homem e da mulher – Adão e Eva -, feitos à imagem e semelhança do Deus criador (vd. fig. 4). 

Estas são as grandes etapas da criação [evolução!], contadas nos primeiros livros do Antigo Testamento, a Génese: o Universo no início, o homem no fim, e, entre estes, os vegetais, os peixes, os répteis e os animais superiores. 

A Origem Segundo as Ciências 

A curiosidade do homem está longe de ser satisfeita. Entre as hipóteses formuladas e propostas sobre o nascimento do Universo, a mais universalmente admitida é a da explosão inicial, também conhecida pelo Big Bang ou a teoria da expansão do Universo. 

Duas descobertas dão peso a esta hipótese: em 1928, Edwin P. Hubble (1889-1953) descobriu a verdadeira natureza das galáxias, determinou a distância de várias delas, evidenciou o movimento que as leva a afastarem-se umas das outras, e encontrou uma relação entre a sua velocidade de recessão e a sua distância – a qual é considerada uma prova da expansão do Universo; em 1964, Arno A. Penzin e Robert W. Wilson (prémio nobel da Física em 1978) registaram uma irradiação de fundo térmico perfeitamente isotrópico, feito de microondas do domínio milimétrico, que parece "banhar" todo o Universo. Esta irradiação não é produzida por uma fonte pontual; ela vem de todo o lado que preenche o espaço. 

As descobertas de Hubble e de Penzias e Wilson vêm consolidar a hipótese segundo a qual o Universo, após uma explosão inicial, o Big Bang, está em expansão constante. Deverão ter-se reunido gigantescas quantidades de matéria, o ponto de partida para o nascimento das galáxias, das estrelas, dos planetas, enfim, de tudo o que compõe o Universo. A homogeneidade inicial deu lugar à heterogeneidade actual, feita de vazio e de matéria. 

À pergunta "Como nasceram a vida e a profusão de formas de vida cada vez mais complexas?", a resposta dada pelos homens foi, durante milénios, atribuída a uma aparição espontânea, fortuita ou sobrenatural. 

Durante muito tempo acreditou-se mesmo na geração espontânea a partir do inanimado. Ora, a geração espontânea é impossível, como aliás demonstrou a ciência: a vida apareceu gradualmente e por evolução, a partir de partículas elementares que deram lugar a seres vivos muito simples, seguido-se uma longa cadeia ininterrupta de complexidade crescente e aperfeiçoamento. 

Além disso, o aparecimento da vida na Terra só foi possível graças a um encadeamento excepcional de condições e de circunstâncias específicas e favoráveis. Bastaria um desvio mínimo da sua trajectória para mudar tudo: um pouco mais perto do Sol, teria feito demasiado calor e a água existente ter-se-ia evaporado como no planeta Vénus; um pouco mais afastada, só teria ficado gelo como em Marte. 

As discussões relativas à origem do Universo e da Vida resumem-se, portanto, a dois conceitos: de um lado, o Criacionismo; do outro, o Transformismo. 

À ideia sagrada do Criacionismo opôs-se a teoria do Transformismo, enunciada pela primeira vez por Lamarck (1744-1829). Segundo esta teoria, todos os seres vivos saíram de uma imensa cadeia de transformações, que foram no sentido da complexidade e de uma progressão constante. Lamarck formulou, então, o seguinte axioma: a função cria o órgão ou modifica-o. A prova está em seres vivos como a toupeira, que, por viver continuamente debaixo de terra, não tem olhos; ou como as aves aquáticas que têm patas espalmadas com membranas entre as garras. Algumas terão perdido parcialmente as asas, que passaram a servir de remos, como o testemunha o corvo-marinho. 

Com Lamarck, a evolução deixa de ser uma hipótese para passar a ser uma constatação. 

Figura 5: Uma indiscutível caricatura
do grande cientista Charles Darwin
publicada em Inglaterra com a seguinte
legenda: «Professor Darwin».
Nela o estudioso toma a forma de um
chimpanzé que abraça uma macaca, pois os
maus intérpretes da obra darwiniana atribuíram-lhe
a crença de o homem ser descendente do macaco.

Alguns anos mais tarde, Charles Darwin (1809-1882) defendeu novamente a ideia de que todas as formas de vida são o resultado de uma evolução, e acrescentou que esse evolução seria feita a partir de um antepassado comum. Na sua obra A Origem das Espécies[7] é proposta a teoria da Selecção Natural, na qual intervêm os seguintes factores: variabilidade, potencialidades, competição e luta pela sobrevivência (vd. fig. 5).

A origem do Universo e da Vida pela criação divina está inscrita na maior parte das crenças. No entanto, a ciência dá-nos provas de que a história da Terra está inscrita nas rochas sedimentares e nos seres fossilizados que a povoaram noutras eras. Geologia e Paleontologia fornecem provas indiscutíveis. 

As camadas geológicas sobrepostas correspondem à sucessão dos tempos. Os fósseis inscrevem-se num momento evolutivo bem preciso. Pode-se, inclusive, situá-los na sua própria época, mediante o chamado Teste do Carbono.[8]

Graças a esta tecnologia, se assim a podermos chamar, são conhecidas as cinco grandes etapas da evolução: a era arcaica, a era primária, a era secundária, a era terciária e a era quaternária, às quais é permitido atribuir, respectivamente, uma duração de 2.500, 1.500, 300, 70 e 3 milhões de anos. 

A era arcaica precede o aparecimento de vida. Na era primária aparecem formas de vida aquática, que evoluiriam para os primeiros anfíbios. A era secundária é dominada pelos grandes répteis, incluindo os dinossáurios, que "conhecemos" através de fósseis e da imaginação humana. A era terciária coincide com o desenvolvimento das aves e dos mamíferos, incluindo os primatas, de onde emergiram os hominídeos. Por fim, a era quaternária compreende dois períodos: o Paleolítico e o Neolítico. 

Homo habilis, homo erectus e homo sapiens são os estádios evolutivos de uma mesma espécie (vd. fig. 6). Os adjectivos habilis, erectus e sapiens servem para designar, respectivamente, as características principais de cada estádio evolutivo: o homo habilis construiu utensílios de pedra cuja concepção e fabrico revelam o raciocínio; já o homo erectus denuncia a utilização de instrumentos especializados, a "domesticação" do fogo e, a justificar a sua designação, a posição vertical; quanto ao homo sapiens, ele testemunha a existência da reflexão e das capacidades de abstracção e imaginação, próprias do homem actual. 

Figura 6: Os percursores do Homem. Da esquerda para a direita:
Pilopiteco, Proconsul, Oreopiteco, Ramapiteco, Australopiteco grácil,
Australopiteco robusto, Homo Habilis, Pitecantropo, Pré--sapiens,
Homem de Neandertal, Homem de Cro-Magnon e Homem actual.
.
Em conclusão, não se pode excluir o homem da Evolução biológica. A sua emergência da animalidade, o seu parentesco com os primatas não se pode negar. O homem é, pois, «um ramo de uma imensa árvore genealógica»[9]

Razão e Fé
«Ninguém, na vasta selva vir­gem
do mundo inumerável, fi­nalmente
vê o Deus que co­nhece. Só o que
a brisa traz se ouve na brisa. O que
pensa­mos, seja amor seja deuses,
passa, porque passa­mos.»

Ricardo Reis, Odes 

Estabelece-se, frequentemente, um paralelo entre Razão e Fé, designando, então, a razão o conhecimento natural do homem sem a ajuda da Revelação de uma entidade sobrenatural. 

Fé e Crença

As duas palavras "fé" e "crença" trazem consigo diferenças de grau e de natureza. É lamentável que sejam frequentemente utilizadas como sinónimos. 

A fé está fora do racional, não pode argumentar-se nem deduzir-se. «A fé sente-se, não se explica.»[10] Consiste numa relação pessoal com Deus, num diálogo onde a Graça da fé é a resposta do crente. Esta relação baseia-se na confiança, na esperança e na caridade. «Quem confia em Deus, crê na sua existência, escuta a sua doutrina, espera nas suas promessas e finalmente ama-O. Quanto mais firme é a fé tanto mais firme é a confiança, mais segura a esperança e mais fervorosa a caridade.»[11] A fé é, pois, certeza e compromisso. E por isso ela resiste, podendo ser heróica como a fé de Abraão, pronto para sacrificar o seu único filho por Deus. Todavia, esse heroísmo, essa resistência pode também tornar-se violenta e perder-se na intolerância e no fanatismo (ver o ponto Extremismos). 

A crença, pelo contrário, assenta na argumentação e na experiência. Tal significa que é objectiva. Ela inspira-se no desejo de encontrar a explicação dos fenómenos cujas causas se apresentam como mistérios, fora do absurdo do acaso e da irracionalidade. É consolidada pelos conhecimentos científicos. A crença é incerteza, pois é atormentada pela dúvida (ver o ponto O mecanismo da vida). Ao contrário da fé, que é certa, a crença comporta a dúvida, o que permite com que escape às ilusões dos sentidos, das paixões individuais e das ideias pré-concebidas. Esta dúvida é uma dúvida metódica, uma dúvida que prova o poder que o espírito tem de pensar e querer. Por outras palavras, a crença é acompanhada de um espírito crítico, nomeadamente em relação a certas passagens reveladas nas Escrituras sagradas. É uma crença racionalizada. 

A crença racionalizada provém da reflexão científica. Muitos são os sábios que partilharam esta crença: Galileu, Kepler e Newton, que descobriram as leis que regem o Universo, eram crentes. 

A crença difere da fé, porque esta é feita de medo e de ignorância, porque é cega, intuitiva e ingénua. Tudo isto não é, nada mais, nada menos do que o irracionalismo, o verdadeiro inimigo da ciência. O irracionalismo que não é, contudo, a religião, embora tenha origem nela. 

Em conclusão, podemos afirmar o seguinte: «Deus existe. Alguns nunca foram visitados pela dúvida: têm a graça da fé; outros atravessam momentos de interrogação: têm a crença.»[12]

O Mecanismo da Dúvida 

A palavra "crer" tem dois sentidos opostos: no contexto religioso, significa não só fé, mas também certeza, podendo, por isso mesmo, levar a fanatismos; no contexto laico, significa hipótese, possibilidade. Todavia, mesmo neste contexto poderá e deverá pressupor a existência de uma fé. Neste caso, uma fé que dialogue com a dúvida: a crença racionalizada. 

Toda a fé comporta a sua dúvida, recalcada, assim como toda a dúvida comporta a sua fé, igualmente recalcada. Cada um dois termos contém o outro em estado recessivo. Por outras palavras, toda a certeza religiosa oculta uma dúvida, do mesmo modo que toda a dúvida oculta um certo número de crenças que se julga terem sido eliminadas. 

Durante muito tempo, a fé prevaleceu sobre a razão, até que a partir da Renascença a fé perdeu o seu carácter absoluto. Ela transformou-se. Agora, é uma fé que não ignora a dúvida: «a fé segundo a dúvida, que combate e a recalca de novo.»[13]

Estamos, então, perante um círculo vicioso entre dois extremos: a fé e a dúvida. A perda da fé conduz à dúvida, que, por sua vez, restitui à fé, e assim sucessivamente. O desespero ou fragilidade de cada uma das "posições" faculta o recâmbio sucessivo de uma para a outra (vd. fig. 7). 

Para lhe "escarparmos", deveremos reconhecer que toda a fé comporta uma dúvida e que toda a dúvida comporta uma fé. Como dizia Miguel de Unamuno (1864-1936), «a fé que não duvida é uma fé morta.»[14] É igualmente importante promover uma comunicação, um diálogo, uma relação melhor entre a fé e a dúvida, ainda que tal tarefa seja muito difícil de ser concretizada. 

Figura 7: O mecanismo da dúvida.

Extremismos 

Seja qual for o contexto cultural e social em que se encontre, o homem irá sempre fomentar discussões entre fé e razão, sendo que esta última pressupõe a dúvida. À semelhança do que acontece com a maioria dos conflitos, esta dicotomia comporta duas posições extremas: a fé levada ao extremo conduz ao fanatismo; a dúvida levada às últimas consequências conduz ao niilismo. É dos males causados pelo excesso ou pela insuficiência das crenças que se falará a seguir.

A Intolerância

A intolerância é normalmente associada ao conceito de niilismo. Este conceito é uma doutrina filosófica que pratica um agnosticismo absoluto e que nega a existência de Deus. 

Como vimos, toda a crença é assombrada pela dúvida, porque assenta na racionalidade. Assim, podemos afirmar que a crença racionalizada vai ao encontro dos que pensam que, por raciocínio, apenas se desemboca no ateísmo. 

Recuando bastante na história da filosofia ocidental, podemos constatar já a presença deste problema, nomeadamente com os atomistas gregos Demócrito (460-370 a.C.) e Epicuro (341-270 a.C.), que formulavam posições materialistas ateias. Já no século XIX, e tendo como contexto profundas transformações aos níveis social e científico, novas formas de ateísmo manifestam a crise dos valores dominantes, particularmente na civilização ocidental. 

De entre os vários autores que se definem como sendo ateus, como o são Friedrich Engels (1820-1895), Karl Marx (1818-1883) ou Sigmund Freud (1856-1939), entre outros, distingue-se Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão, para quem «o ateísmo é uma coisa instintiva.»[15] Recorde-se o contributo de Lamarck e de Darwin, este último com a obra A Origem das Espécies, em que a constatação do evolucionismo serviu de justificação científica para o ateísmo de Engels e de Marx. A nova realidade provada por Darwin punha fim ao mito de Adão e Eva, considerados os pais da humanidade saídos das mãos de Deus. 

Nietzsche, negando a modernidade e o progresso, convencia-se de que vivia numa época de ruína e de decadência, provocadas pelo cristianismo, o que conduziu à negação da vida e da vontade de viver. Nietzsche propôs, então, uma transmutação de valores, que passava pela necessidade de eliminar-se a crença em Deus e em todas as filosofias idealistas que acentuam os valores num ser absoluto e divino. A proclamação da "morte de Deus" permitiria a abertura de perspectivas à energia criadora do homem, proporcionado o seu desenvolvimento total. O niilismo que este acontecimento anuncia revela-se indissociável do nascimento de um tipo de homem superior, o "Super-Homem", e da afirmação de novos valores. 

Para Marx, a religião era um fenómeno social, uma forma de alienação traduzida na sua célebre expressão «o ópio do povo.»[16]

Segundo Freud, a religião não é nada mais nada menos do que uma ilusão, produto dos medos e complexos infantis. 

Jean Paul Sartre, filósofo partidário do existencialismo ateu, defendia que o homem era um produto de si mesmo. "O homem é o que ele próprio faz", dizia Sartre, para quem a ideia de Deus era um absurdo. Nesta perspectiva, atribui-se ao homem tudo aquilo que antes se atribuía a Deus, o que vai ao encontro da ideia do "Super-Homem" defendida por Nietzsche. 

O fanatismo 

Tal como acontece com a intolerância, o fanatismo consiste num desvio relativamente a uma dada crença. Este desvio constrói-se pelo excesso dos valores dessa crença, culminando em movimentos vulgarmente designados por seitas. 

O termo "seita", do latim secta, significa uma via que se segue, uma maneira de agir, um sistema de conduta, uma escola política ou filosófica. Actualmente, a palavra "seita" serve para identificar uma doutrina geralmente não reconhecida ou mesmo em oposição com as instituições de base da sociedade em que se insere. 

Como nasce uma seita? O que ela oculta? Questões como estas obrigam a uma reflexão, com o intuito de descobrir os problemas que acarreta. 

O nascimento de uma seita começa pela existência de um guru. Depois, vem a doutrina. Mais tarde, finalmente, segue-se-lhe um sistema social e político, ideal e totalitário, que pretende fazer da humanidade uma só e mesma seita cujos detractores não têm como perspectiva senão desaparecer ou a ela submeterem-se. O mesmo é dizer que tal sistema se funda numa ideologia anti-pluralista. 

O guru fundador caracteriza-se, de uma forma geral, por ser um homem sem grandes qualidades, pouco instruído, frequentemente instável no seu comportamento sexual, de excitação descontrolada, dotado de um orgulho desmedido, com tendência para a paranóia, egocêntrico, que gosta da mitomania, da manipulação perversa, da exaltação da sua omnipotência, enfim, com os atributos de uma imaturidade irredutível. Apesar disto, não podemos dizer não tratar-se de uma pessoa perfeitamente responsável pelos seus actos. 

A tensão gerada por aquelas qualidades é, todavia, o que o anima e o impele a avançar com os seus ideais. 

Para ganhar adeptos em todas as camadas da sociedade, as seitas desenvolvem uma verdadeira estratégia de sedução, mediante a oferta de objectivos mobilizadores, a proposta de ideias elevados, multiplicando as promessas de felicidade através de uma vida cheia de êxito e de saúde, como prémio pela fé em Deus. 

Tudo isto não passa de uma fachada de máscaras irrepreensíveis destinadas a dissimular as armadilhas do recrutamento. Deste modo, o futuro adepto é iludido por aquilo que o guru afirma e pratica. Este transforma-se, então, num ídolo. A partir daí, o serviço do "mestre" passa a ser a razão de viver da multidão dos adeptos. A particularidade do seu carisma fascina o adepto, que o venera, adora, receia e teme. Contudo, este «confortável pronto-a-vestir ideológico»[17] oculta uma verdade inquietante: o adepto não imagina que irá ser condicionado a adoptar um vocabulário, modos de pensar e agir determinados, hábitos de obediência absoluta, a ausência de reflexão crítica e a rejeição de todos os valores exteriores ao grupo. Sob uma falsa liberdade e voluntariedade, o adepto desconhece que irá tornar-se vítima do poder dos dirigentes, o que se traduz na exploração financeira e na servidão de energias e de lucros. Ou seja, o crente ignora ter caído numa armadilha mortal. 

O historial das actividades sectárias põe em evidência os aspectos negativos desta faceta do homo religiosus [18]

Os perigos situam-se, sobretudo, no campo das liberdades individuais, da educação, da saúde, da integração social e das liberdades democráticas. 

No campo das liberdades individuais, os adeptos correm o risco de cair sob o domínio de uma autoridade absoluta, que lhes exija uma submissão total e a sua redução ao estado servil. 

No domínio da educação, a interdição de acesso aos pluralismos exteriores ao grupo e a sua diabolização resulta na modelagem de pequenos autómatos de reacções estereotipadas. 

No domínio da saúde, tanto física como psicológica, alguns grupos são particularmente destrutivos, já que levam à recusa de cuidados médicos para com pessoas em perigo de morte, preconizam dietas aberrantes ou tratamentos tóxicos e destabilizam psicologicamente as pessoas, podendo culminar em graves depressões ou mesmo em suicídios ou atitudes suicidas (vd. fig. 8). Tais consequências registam-se na maioria das seitas.

Figura 8: Saigão, Vietname do Sul, 11 de Junho de 1963:
Thich Quang Duc, um monge budista, imola-se em protesto
contra a perseguição religiosa por parte do Governo Vietnamita.

A nível da integração social, diga-se que, à ilusão de que é fácil o afastamento do grupo por livre vontade, correspondem grandes dificuldades no processo de reinserção no universo habitual. Muito por causa do enfraquecimento moral, acompanhado, por vezes, de uma grande miséria pessoal, que as práticas sectárias fomentam. 

No campo das liberdades democráticas, é frequente recorrer-se a uma técnica que "utiliza" a presença de uma entidade altamente poderosa, que possa observar e concluir a liberdade e a felicidade dos membros de uma seita. Tal entidade irá funcionar como um líder de opinião, que passará para a sociedade onde a seita se insere esse clima de bem-estar geral. A título exemplificativo, podemos referir o caso da seita O Templo do Povo, dirigida pelo reverendo Jim Jones: no dia 16 de Novembro de 1978, o senador norte-americano Leo Ryan, juntamente com uma equipe de jornalistas, foi a Jonestown, situada no meio da floresta virgem da Guiana, no sentido de apurar os rumores que circulavam e que alegavam a eventual permanência de indivíduos norte americanos contra a sua vontade, ou seja, a inexistência de liberdade de circulação dos membros do grupo. Durante a sua estadia, o senador deparou com uma felicidade quase absoluta, que o convenceu. Porém, no dia 18 de Novembro, agendado para a sua partida, alguns elementos mostraram a sua vontade em deixar Jonestown. O que parecia ser um acto pacífico, depressa transformou-se num tiroteio que vitimou mortalmente o senador Leo Ryan, alguns jornalistas e os desertores. O balanço foi de 11 mortos e 4 feridos. Seguiu-se o suicídio em massa por envenenamento com cianeto de toda a comunidade. No total, morreram 923 pessoas, incluindo cerca de 200 crianças, todas elas assassinadas. 

De todos os perigos anteriormente enunciados, não há dúvida que a morte é o mais grave, seja por falta de cuidados médicos, seja por incitamento ao suicídio ou mesmo por assassínio. 

Encontramos outros exemplos que nos alertam para a violência de certas seitas: no dia 19 de Abril de 1993, durante o cerco pelo Federal Bureau of Investigation (FBI), mais de 80 membros da seita dos Davidianos, dirigidas dor David Koresh, morreram carbonizados no incêndio da sua quinta-fortaleza, situada em Waco, Texas; Outubro de 1994, Joseph di Mambro, guru da Ordem do Templo Solar, organizou uma "passagem" para o planeta Sírio. Balanço final: 53 mortos, por suicídio ou assassínio, na Suíça e no Canadá; Março de 1995, em Tóquio, no Japão, Shoko Asahara, o mestre da Aum - Verdade Suprema, ordenou um ataque com o mortífero gás sarin a uma estação de metropolitano, resultando num total de 12 mortos e 5.000 feridos. 

Quatro seitas, quatro líderes, quatro exemplos que testemunham um mundo recheado de actos criminosos: assassínios, violações, raptos, torturas, castigos, fraudes, atentados… eis o destino dos membros, desertores e possíveis ameaças ao grupo. 

Em conclusão, uma seita resume-se a todo um processo de manipulação mental que percorre o mundo em busca de adeptos – que são o seu sustento -, vítimas de uma «descerebralização organizada».[19] Os falsos profetas, sob aparências religiosas ou filosóficas, transformam os adeptos num ser incondicional, pronto a afirmar, a acreditar e a fazer tudo o que o guru proferir. Ou seja, o adepto «é submetido a uma verdadeira agressão intelectual»[20], perdendo todo o tipo de liberdades fundamentais a que todo o indivíduo tem direito. Obediência cega, devoção absoluta; ninguém escapa, nem mesmo as crianças. 

É esta a principal característica que distingue a seita das certezas veiculadas pela fé. A fé exige um acto livre e responsável; deve poder sintonizar-se com a razão, ao invés de anestesiar o espírito crítico e o livre arbítrio dos seus adeptos. Além disso, a fé não oculta nada. 

A seita esconde a sua verdadeira natureza: organização de subjugação, de manipulação, de submissão coerciva, de ruptura e de subversão. 

Conclusão

Abordar este tema de uma forma reduzida não é tarefa fácil. A delicadeza do problema, sempre actual, obriga a uma reflexão mais profunda, a uma análise mais elaborada, tal como o comprovam os vários volumes de diversas colecções (no "mercado de leitura") dedicadas à polémica questão da Razão e da Fé. Mesmo uma "compilação" do que é absolutamente essencial, com a possível brevidade, revela-se necessariamente extensa. Não deixa de ser insuficiente para compreender todo o cerne da questão. 

A minha crença, confesso-o, é acompanhada de um forte espírito crítico. É difícil, se não mesmo impossível, tomar por verdades absolutas todo o conteúdo das Revelações, dos milagres, das aparições, entre outros fenómenos. 

Este trabalho de reflexão surgiu, assim, como uma "viagem" em busca da verdade, a qual ainda desconheço e que, possivelmente não irei conhecer nunca. 

Aqueles que estão animados por uma crença racional que transcende a sua dúvida não menos racionalizada, como é o meu caso, não param de colocar questões. «A mecânica da razão segrega a dúvida como o fígado segrega a bílis», afirma Jean Hamburguer[21]. Todo o mecanismo da dúvida reina na minha consciência. A resposta às perguntas "Como surgiu o Universo e a Vida?", "Será que realmente existe Deus?", "Onde está a verdadeira religião?", "Se realmente Deus existe, porque é que não a designou a toda a humanidade?", entre outras, permanecerão para sempre um mistério. 

O homem e a natureza são ambos parte integrante de um mesmo mundo. Estas duas componentes do planeta relacionam-se sendo o elo precisamente o mundo teórico, feito de conceitos formais construídos pelos entendimentos, consoante as condições e as finalidades que o homem deseja ver natureza. 

O resultado desta acção mútua e contínua é que já não vivemos num mundo exclusivamente "desenhado" pelo entendimento de Deus, mas sim num mundo moldado por uma multiplicidade de homens com inúmeras filosofias de vida. 

A ciência ganhou, pois, terreno à religião e completou as lacunas deixadas por esta nas tentativas para explicar a Origem do Universo e da Vida e sua evolução. 

No entanto, é aqui, em particular, que reside o maior problema: numa aparente relação harmoniosa entre Fé e Razão, surgem falsos profetas e charlatães, que se escondem por detrás da religião. Ter fé transforma-se, muitas vezes, em fanatismo, o que se traduz na crescente profusão de grupos sectários, muitos deles perigosos para a saúde física e mental do homem. 

A cada dia que passa, são trazidas a público novas descobertas que perturbam profundamente a consciência humana. Pense-se no que oferecem hoje as Ciências do Espaço ou a Biologia; Pense-se no ritmo acelerado com que as descobertas são feitas; Pense-se na profunda incerteza dos próprios cientistas perante as consequências prováveis dos progressos da Ciência[22]; Pense-se nas reticências fomentadas pelo formidável e complexo cérebro humano. 

A vida começou e evoluiu; continua a evoluir, muito embora seja difícil a constatação desse facto. Todo o ser vivo tem um termo. Do mesmo modo, a humanidade terá, certamente, o seu. Porém, ao passo que muitas espécies se extinguiram devido a fenómenos naturais, o homem depende quase única e exclusivamente de si próprio, do carácter da sua intervenção no planeta. 

As modificações climáticas, a destruição da camada de ozono, que absorve a quase totalidade dos raios ultravioletas do Sol, o desmedido crescimento demográfico, a destruição de florestas virgens, principal fonte de matéria-prima para a medicina, a crescente industrialização, os testes nucleares, a poluição atmosférica e dos recursos hídricos, a ameaça de uma guerra mundial química… Atente-se no quadro escuro que se avizinha e que ameaça todo o equilíbrio natural do planeta. 

Todos os anos extinguem-se várias espécies; Amanhã, poderá ser a espécie humana. É forçoso disciplinar a mente de toda a humanidade no sentido de salvar a espécie humana, entre as demais já existentes. Contudo, é necessário lembrar que não se pode salvar uma espécie sem antes salvar o seu habitat! 

Dado o quadro negro, não é de estranhar que, de repente, estejam a ser levantadas questões em catadupa: pelos economistas, que hoje podem ver e até medir os danos causados pela adesão ao crescimento económico como o único método e objectivo do progresso; pelos políticos, confrontados com uma série de problemas convergentes para os quais as soluções já não parecem adequadas; pelos próprios cientistas, que não só nos fornecem os factos sobre a nossa dependência ecológica, como também estão a começar a pôr em dúvida as explicações mecanicistas para a vida na Terra; e pelos dirigentes religiosos, que, finalmente, parecem estar a redescobrir a noção de que a Terra faz parte do objectivo criador de Deus, e deveria, portanto, ser considerada como parte desse mistério. 

Para finalizar, citarei dois excertos, com os quais pretendo mostrar que, por um lado, nada seríamos sem a razão, mas por outro, devemos ter muito cuidado com o que dizemos relativamente ao que desconhecemos. O primeiro[23] é de um poema da minha autoria, intitulado Auto-Retracto; o segundo[24] é retirado da obra Iniciação Filosófica, da autoria de Karl Jaspers: 

Texto 1:

«Ai a minha mente…
Eu sei que ela não mente
Porque é omnipresente
Tal como a ideia de Deus.

Sim, Deus! (...)
A mente é que é Deus! (…)

A mente é uma corrente,
Uma concorrente
e uma sobrevivente
Ao Sol nascente
E ao Sol poente.»

C.O., 97-12-26

Texto 2:
«Se a existência de Deus é posta em
dúvida, deverá dar uma resposta, a não ser
que se entrincheire numa filosofia céptica que
não afirma nem nega, ou se restrinja no saber
definitivo e objectivo, que é o conhecimento
científico, e abandone a filosofia dizendo: do
que se não pode saber não se deve falar.»

Karl Jaspers, Iniciação Filosófica

Índice de Notas
  1. Guy Lazorthes, Croyance et Raison, Éditions du Centurion, s.d., p. 12. 
  2. Ibidem.
  3. Bertrand Russel, History of Western Philosophy – And Its Connection with Political and Social Circumstances from the Earliest Times to the Present Day, s.d., p. 157. 
  4. Al-Hazen é a simplificação do nome Ibn al-Haitam, Abu Ali al-Hassan Ibn al-Hassan. 
  5. Nayla Farouki, La Foi et la Raison, s.l., Flammarion, 1996, p. 242. 
  6. Guy Lazorthes, op. cit., p. 19. 
  7. A Origem das Espécies, publicada em 1859, vinte anos após a viagem que fez às regiões austrais – América do Sul, arquipélagos do Pacífico, de Cabo Verde e das Galápagos, das quais se destaca a fauna estranha e específica do arquipélago das Galápagos, demonstra bem a constatação do acto evolutivo das espécies. 
  8. A datação das camadas geológicas e dos fósseis é obtida pela radiocronoligia. Os corpos radioactivos perdem por destruição uma parte dos seus átomos: a vida média de um corpo radioactivo é a duração que metade dos seus átomos leva para se desintegrar, emitindo electrões (irradiações beta). Um dos elementos mais correntes é o carbono. Daí a corrente denominação de Teste de Carbono na datação de esqueletos e de outros detritos. 
  9. Guy Lazorthes, op. cit., p. 109.
  10. Guy Lazorthes, op. cit., p. 7.
  11. Monsenhor Manuel Marinho, Imitação de Cristo, p. 313.
  12. Guy Lazorthes, op. cit., p. 9.
  13. M. Helena Varela Santos, e Teresa Macedo Lima, No Reino dos Porquês - O Homem do Outro Lado do Espelho, 4ª ed., Porto, Porto Editora, L.da, 1985, p. 398.
  14. Guy Lazorthes, op. cit., p.152.
  15. Carlos Ortet, Nietzsche – A Religião, Aveiro, 1994, p. 10.
  16. M. Helena Varela Santos, e Teresa Macedo Lima, op. cit., p. 375.
  17. Centro Roger Ika, Les Sectes: état d’urgence, Paris, Éditions Albin Michel, 1995, p. 13.
  18. M. Helena Varela Santos, e Teresa Macedo Lima, op. cit., p. 392.
  19. Centro Roger Ika, op. cit., p. 10.
  20. Idem, p. 23.
  21. Guy Lazorthes, op. cit., p. 197.
  22. O exemplo mais recente é a clonagem e as questões ético-morais que esta técnica levanta.
  23. Carlos Ortet, Devir, vol. 2, Aveiro, 1998, p. 33. [Livro de poemas não publicado].
  24. Apud Karl Jaspers, M. Helena Varela Santos, e Teresa Macedo Lima, op. cit., p. 408.

Bibliografia
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  • BIROU, Alain, Vocabulaire Pratique des Sciences Sociales, s.l., s.d.. [Ed. port.: Dicionário de Ciências Sociais, s.l., Círculo de Leitores, 1988].
  • INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS SOCIAIS E POLÍTICA ULTRAMARINA, Estudos Sociais e Políticos, vol. 3, Lisboa, n.º 3, 1965.
  • ORTET, Carlos, Devir, vol. 2, Aveiro, 1998. [Livro de poemas não publicado]
  • ORTET, Carlos, Nietzsche - A Religião, Aveiro, 1994. [Obra não publicada, desenvolvida no âmbito da disciplina Filosofia, do 12º ano, na Escola Secundária Homem Cristo]
  • ORTET, Carlos, e BARRETO, Nuno, A Mulher: Cultura, Sedução e Consumo, Aveiro, 1998. [Obra não publicada, desenvolvida no âmbito da disciplina História da Imagem, leccionada no 4.º ano do curso de Licenciatura em Comunicação Institucional, no ISCIA]
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Fontes Audiovisuais
  • BERTHELLIER, Catherine, e VAILLOT, Bernard, Killer Cults, episódios 1, 2 e 3, [filme-documentário co-produzido por] Galaxie Presse, Pix Com, Technisonor, France 3 e Canal Vie, 1998. [Ed. port.: As Seitas da Morte]. 
  • DISCOVERY CHANNEL, Las Mejores Historias Cientificas de 1998 [filme-documentário], Discovery Channel TM, 1998. [Ed. port.: Discovery News: O Melhor de ‘98]. 
Índice de Gravuras

Figura 1: Cópia aproximada do mapa da distribuição espacial das religiões no mundo, in Grande Atlas Mundial, Lisboa, Selecções do Readder’s Digest, S.A.R.L., 1978. [Reprodução digital].

Figura 2: Foto da luneta de Galileu, in Sulla Giustra delle Stelle, de Giancarlo Masini, Nardini Editore, s.d..

Figura 3: Desenho de um dos primeiros microscópios, in Un Codice per L’Universo, de Giancarlo Masini, Nardini Editore, s.d..

Figura 4: Pintura de Dürer, in A Mulher: Cultura, Sedução e Consumo, Aveiro, ISCIA, 1998.

Figura 5: Caricatura de Charles Darwin, in Sulle Tracce della Vita, de Giancarlo Masini, Nardini Editore, s.d..

Figura 6: Os percursores do Homem, in Introdução à Antropologia Cultural, de Augusto Mesquitela, 3.ª ed., Lisboa, Editorial Presença, Lda, col. «Textos de Apoio», n.º 1, 1990.

Figura 7: Esquema do mecanismo da dúvida, in No Reino dos Porquês - O Homem do Outro Lado do Espelho, de M. Helena Varela Santos, e Teresa Macedo Lima, 4ª ed., Porto, Porto Editora, Lda, 1985.

Figura 8: Foto de Malcolm Browne, The Associated Press, USA, in Photo, Publication Filipachi Médias, n.º 351, 1998.


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